A Central Única das Favelas, é uma entidade não Governamental que visa a integração social através da Cultura, do Esporte, da Educação e do Lazer, vem se destacando nos espaços como uma das maiores Redes de Diversidade Sócio Cultural, existente no País há 20 anos foi fundada por jovens das periferias do Rio de Janeiro tendo como um dos fundadores MV Bill.
domingo, 4 de abril de 2010
COTAS RACIAIS
Ao assistir um debate na TV bandeirantes, senti a necessidade de expor minha visão tanto sobre a estrutura do debate, como sobre seu conteúdo, mesmo que o primeiro esteja estratégica e intimamente ligado ao segundo. Mas para meros fins de exposição, começo pela estruturação da mesa. Antes de tudo, é preciso ser dito que não dá para ir a debates sobre o tema das cotas raciais, apenas porque fomos convidados, é preciso estabelecer regras, se não vamos ficar nesse debate como um leão na jaula, sendo instigado por vários caçadores. Era esse o sentimento que eu tinha ao ver esse debate. Defendendo as cotas raciais estava o respeitável e amigo Frei Davi, do outro lado, contra as cotas, estava toda a TV Bandeirantes, todos os jornalistas que compunham a mesa e mais o sociólogo Demétrio Magnoli, por quem tenho grande admiração e respeito. O fato é que, o que devia ser um debate de idéias virou uma tentativa de constrangimento ao nosso amigo Frei Davi. De imediato eu “imaginei ” como pode ter sido feito o convite:
- Alô, senhor Frei Davi?
- Sim, é ele.
- Como vai, sou fulano, produtor da TV bandeirantes, queremos fazer uma discussão sobre cotas num programa de relevante audiência e queremos convidar o senhor por ser um militante da causa e ser muito respeitado.
- Sim, claro que vou.
E não só foi, como mandou muito bem. Porém, acho importante que pessoas que lutam pela causa tenham em mente que é preciso aceitar tais convites mediante o estabelecendo condições. É necessário esse senso de responsabilidade, porque do contrário fica uma misto de desrespeito com manipulação que fica até agressivo ao espectador, o que deveria ser uma preocupação da emissora, mas não o é, e assim, o único defensor do tema pode acabar ficando colocado como alguém apenas pautado pela indignação, que é calculadamente provocada, é lógico.
Vamos ao conteúdo do debate, que tem como pano de fundo a substituição dos atuais programas sobre cotas, por um programas unificado que vem sendo discutido no congresso nacional, que colocaria 50% de cotas em todas as universidades públicas do país, mas sem divisão por segmentos. Discussão essa que é praticamente desconhecida do grande público, por mim inclusive, mas vamos escurecer um pouco a questão.
Com os programas de cotas, descobriu-se que nas universidades públicas entra uma grande porcentagem de alunos das escolas públicas: entre 30% e 40%, mas em quais cursos? Naqueles considerados “pouco nobres” como Pedagogia, História, Geografia, etc. Dificilmente entra aluno pobre ou negro pobre nos cursos considerados “nobres” como (direito, medicina, odontologia, etc.). Apenas para não dar margem a distorções tão comuns quando se trata deste assunto, cabe ressaltar que não faço juízo de valor dos cursos, utilizo apenas expressões do dia-a-dia de todos nós. Todas as profissões e formações devem ser valorizadas, inclusive aquelas que não necessitam de um canudo para afirmá-la. Bem, mas onde de fato se incluiu negros e pobres foi onde houve a separação entre as cotas raciais e sociais, e não apenas com as cotas sociais, como muitos querem afirmar, sob o argumento de que o problema no Brasil é social e não racial. Amigos, os problemas no Brasil são todos os problemas! Cito exemplos: Na UFPR (Universidade Federal do Paraná) que optou por cotas específicas, sociais e raciais, nesse ano entraram entre 15 e 20 alunos negros nos cursos considerados “nobres”. Ao todo, desde 2005 são aproximadamente 100 a 130 alunos negros e pobres nesses cursos. A universidade pratica a seguinte política de inclusão: 20% para cotas raciais, 20% para sociais e reserva de vagas para indígenas e 60% para o geral. As vagas que sobram das cotas (e sempre sobram nas cotas raciais, nas sociais não) retornam para o geral. Ou seja, sempre tem mais de 60% de vagas para o geral.
Sou radicalmente contra as cotas, tanto quanto meu amigo e ídolo Caetano Veloso e outros amigos e amigas que também o são. Vivemos numa democracia, não podemos patrulhar a opinião dessas pessoas, e o fato de discordar delas não altera nosso valor, assim como também não acontece com eles que discordam de nós. Mas a luta tem sido sim convencê-los do contrário, e quantos deles já foram capazes de perceber o nosso sentimento? Muitos.. Bem, a discordância que tenho deles se relaciona apenas com os passos que precisam ser dados para que haja algum grau de paridade entre a formação e inserção dos negros na sociedade.
Pra mim é inconcebível que nós, chamados de mestiços como todos brasileiros o são, mas que temos na pela a cor preta, e não a branca, fiquemos esperando passivamente as soluções chegarem. Já esperamos muito, estamos esperando desde 1888, e as soluções não chegaram, se não botarmos o pé na porta, incomodando e criando desafetos pelo caminho, o que será inevitável, podem ter certeza de que elas não vão chegar nunca. A educação igual para todos, que seria o caminho ideal, parece que não chegará nunca.
Os que se dizem contra as cotas acham que o caminho é exatamente esse, continuarmos a esperar que haja uma reformulação no ensino de base para que nossa juventude preta, que de acordo com todas as estatísticas são os que sempre estão à margem (lideram as taxas de desemprego, presidiários, mortalidade urbana, salários mais baixos etc.), tenha só aí a chance de concorrer em paridade com os filhos da elite em busca de uma formação qualificada. Cabe dizer que, em sua esmagadora maioria, essa elite de hoje tem o mesmo perfil desde 1888, ou seja são brancos de boa fé e muito bem intencionados. E nada mais natural que o sejam, já que apenas fizeram perpetuar a riqueza e o domínio, sem querer abrir mão de nada, o que é, repito, natural, para eles. No entanto, finalmente a sociedade brasileira chegou num estágio de ir contra a essa naturalidade, de manutenção de tudo como sempre foi, com a felicidade parecendo caminhar apenas para os braços de uma parcela da sociedade cuja a cor é “por acaso” clara.
Estão sendo pensadas e praticadas formas concretas de reparar uma política social que anteriormente se pautou sim pelo recorte racial, mas que agora, quando deseja fazer o mesmo para possibilitar a ascensão do negro, aí os inconformados não aceitam e gritam, ou organizam debates democráticos como esses, que além de estratégicos, seriam engraçados, se não fosse um fato trágico para nós.
No entanto, se estes senhores estivessem um pouco mais atentos veriam que se não abrirem as cotas agora, elas serão invariavelmente buscadas de outras formas, que podem ser mais dolorosas. Os números crescentes da violência provam isso. Quem mais mata no Brasil? São os jovens negros, fruto do acaso? Não, é apenas a ordem natural dessa pressão imposta carinhosamente em nome de uma suposta democracia racial. Os jovens pretos, “fudidos” não aceitam que somente os filhos de uma classe pode ser feliz, eles também querem consumir, também são atingidos pelo apelo publicitário ininterrupto que vende sonhos, amor, felicidade, e eles querem isso também, querem fazer parte dessa classe, querem ter acesso a essa cota universitária que estabelece que só os brancos tenham vez. Ou seja, as cotas já existem, estamos só tentando ser incluídos nelas, pois acreditamos que temos direito, e temos mesmo, ou não? Então, as cotas podem acirrar os ânimos, mas a falta das cotas também vai acirrar, pois a negrada tá de saco cheio dessa conversa antropológica de conglomerado de mídia que transbordam democraticamente todos os dias suas posições de que a política de cotas é um câncer social, talvez seja, mas para quem está agonizando no CTI e nunca teve nada, qual a diferença?
Não acho que as pessoas que defendam a permanência da espera sejam “do mal”, acho que elas simplesmente vêem a vida por outra lógica, que é muito distante da que eu vejo, tanto que hoje recebi um e-mail de um deputado respeitável e muito humano, criticando as cotas, dizendo que somos um país multicolorido e feliz, que se as cotas específicas forem ampliadas e não reformuladas, pela primeira vez teremos preconceito racial no Brasil. Ou seja, não posso crer que ele seja mal intencionado, mas apenas que se comporta com alguém insensível, nada mais.
Ratifico que sou totalmente contra as cotas, mas enquanto ninguém vier com uma solução, ou mesmo com um paliativo, eu só posso crer que a política de cotas é a única alternativa para quem está na parte baixa dessa roda gigante enferrujada. Ela não vai rodar se ficarmos esperando que o modelo social e econômico seja justo e repare o processo anterior de injustiça social e racial. Se isso não foi feito até hoje, não há quem me faça crer que será diferente em algum dia, tal discurso, aliás, só me faz crer no contrário.
Nessa discussão, há aqueles que dizem que o conceito de raça foi cientificamente superado e que a luta deve ser por uma sociedade pós-racial. Eu acho lindo isso, de verdade, seria lindo que eu não precisasse estar aqui escrevendo sobre isso, por acreditar que todos somos iguais e que só existe uma raça, a humana. Lindo! Mas mesmo os que levantam essa bandeira, sabem (ou vêem) que a maioria dos meninos de rua, daqueles que moram em condições precárias em favelas e periferias, dos que recebem os salários mais baixos e as funções e menos qualificadas são os negros. E pra mim fica nítido que isso é fruto direto de séculos de escolhas políticas, que me fazem ver todos os dias que uns são mais iguais que outros.
Se a questão passa pelo uso da palavra “raça”, que deveria ser substituída por etnia ou outra similar, ai eu nem começo a conversa, porque não é discussão de termos teóricos que me interessa e sim a resolução de uma situação com a qual convivo desde sempre, na prática, na pele e não no plano teórico. Seja usado o termo que for, o que os intelectuais considerem mais adequado, isso eu não discuto, concordo com todos que quiserem usar, o fato é que todos os anos o IBGE nos mostra que quem ocupa as posições inferiores em todos os índices são os negros e não os multicoloridos, proponho inclusive que esses gigantes processem o IBGE ou não aceitem divulgar suas pesquisas. E não sei se estão lembrados mas a era pós-racial, que tanto louvam e que Obama seria o auto-representante legítimo, só aconteceu nos EUA depois de anos de luta dos negros, que buscaram inserção e não ficaram esperando que os modelos sociais os contemplassem algum dia. Eu nem queria lembrar isso para não ser acusado de querer imitar os norte-americanos, até porque não se trata disso, só estou usando os exemplos usados pelos próprios anti-cotistas.
Hoje vi na televisão que um negro deve assumir a direção da NASA, e que será o primeiro negro a assumir tal papel. Nesses momentos, tem negro. Nenhuma emissora de TV diz “Um multicolorido, um mestiço, vai assumir a NASA”. Porque sabem identificar muito bem, quando querem, os negros. Nesse caso, ainda bem, é para algo muito positivo, porém, quando falam que agora é o primeiro negro, isso significa que o “homem” já foi, agora é o negro, então mais uma vez sugiro que essas emissoras e veículos não façam menção a esse detalhe irrelevante, já que todos somos humanos. Vejam, não tem nada de sofrido nesse discurso, só quero propor uma reflexão sobre o tema que é muito polêmico mesmo.
Não sou defensor da política racial americana, do apartheid ou mesmo do antagonismo entre brancos e negros, não busco revanchismo, preconceito ao contrário, ou o que possa ter ligação com essa idéia, mas o fato é que, sobretudo, não quero a manutenção do preconceito atual, e se nada de concreto e imediato for feito para possibilitar que o negro ascenda socialmente, continuaremos sempre nos vangloriando de nosso país mestiço, da mistura e da convivência pacífica entre cidadãos de todas as cores, mas na hora que cada um for pra sua casa, alguém sempre vai entrar no seu carro, buzinar pro porteiro do condomínio e subir de elevador, e esse “alguém” continuará a não ser o negro. Se nada for feito, as estatísticas do IBGE continuarão tendo no topo da pirâmide os brancos e na base os pretos. Eu não quero a inversão disso, quero, ao menos, a possibilidade de que seja formada uma outra figura geométrica, em que eu veja que não apenas poucos (em sua maioria branca) sejam os privilegiados em todos os índices, e que tantos na base (imensamente de negros) sejam os miseráveis.
Os que vivem da explanação teórica da discussão, escrevendo livros (lembro que Bill e eu somos os negros que mais venderam livros no Brasil, já que o Brasil considera o Machado de Assim mulato, como praticamente todos os livros de literatura o definem. Mas como o conceito literário não se aplica a nós, somos processados por apologia ao crime por esta obra. E se escrevêssemos livros sobre facções criminosas como PCC ou Comando Vermelho estaríamos presos hoje? Mas isso não é preconceito, de forma nenhuma, é a regra do sistema que pensa todos como iguais) formatando debates ou sendo “a voz” do especialista sobre o tema quando alguma TV o convida para o comentário do tele-jornal, me parecem viver em outro país que não o que vivo. Pois para algumas destas pessoas, o fato de termos todas as gradações de tonalidade de pele no Brasil, sem que haja “conflito”, parece que automaticamente exclui a possibilidade de haver racismo. Não entendo como isso pode ocorrer, não entendo mesmo, e, sobretudo, não entendo que suas argumentações contra as cotas partam do princípio que, com elas, estaríamos instituindo a discriminação, que, de acordo com seus pontos de vista, nunca fez parte da sociedade brasileira.
Como já disse, acho natural que cada um defenda o que acredita, utilizando os argumentos que têm pra isso, seja um debate na televisão ou uma coluna no jornal, mas como não quero acreditar que os senhores que o fazem tenham a intenção de ofender a inteligência do público, colocarei dessa forma: não vamos brincar de mentir, senhores! Não vamos negar o racismo que sempre existiu e que existe em nosso país. Daqui a pouco, estarão negando que no Brasil o racismo era política oficial de governo, vão negar inclusive a escravidão, o que por sua vez, está na origem de tudo o que vem sendo discutido hoje.
Quem tem a tonalidade de pele preta sabe com absoluta certeza que há preconceito racial sim, e não é preciso grande esforço para provar isso. O ato corriqueiro de entrar numa loja, que nem precisa ser de padrão tão alto, revela na quase totalidade das vezes, uma diferença mais do que visível por parte do tratamento dos vendedores, se esse cliente for branco ou for negro. Essa convivência pacífica, tão festejada pelos sociólogos, antropólogos e demais acadêmicos distraídos contém o racismo velado, à moda do homem cordial brasileiro, que fica nas entrelinhas, e que, justamente por isso, é o mais difícil de ser combatido. Se com as cotas o preconceito “aparecer”, garanto aos senhores que para nós não será muito diferente do que já é, e acho que vale a pena comprar o pacote, já que dessa vez viria algo de bom, com mais negros pelos corredores das faculdades federais, dentro das salas dos cursos nobres. Ainda que no início eles cheguem de ônibus ou trem enquanto a maioria dos alunos estaciona seus carros importados dentro do campus das faculdades federais, eu compro o pacote! Preconceito todos nós já sabemos o que é, podendo enfrentá-lo ou não (pois quando um currículo é descartado por ter uma foto 3×4 de um negro, esse nem ao menos pode se colocar diante de uma entrevista), portanto, não tememos que ele “surja” com as cotas. Entendo que os senhores e senhoras temam, porque não sentem, não passam, não vivem e imagino que achem um absurdo o que estou escrevendo. Fico feliz por essa preocupação dos senhores pelo Brasil ou talvez pelos seus filhos, só que é bom lembrar que somos brasileiros e também temos os nossos filhos, e as nossas preocupações.
Além destes que negam a existência do racismo, há outros mais realistas, que acreditam que haja o preconceito racial, mas não admitem que nenhum conhecido seu seja racista. Eles próprios então, de maneira nenhuma. Outro dia num debate, o Preto Zezé, o coordenador internacional da CUFA, perguntou a platéia branca que discutia o racismo: - Quem acredita que existe preconceito racial no Brasil? Todos levantaram o braço, todos e todas. Em seguida, ele perguntou: – Quem aqui é racista? E, lógico, ninguém levantou a mão. Racista são os outros, eu não. Infelizmente amigos, sociedade pós-racial, é utopia. Me emociono ao ver Obama falar, mas sei que ainda estamos longe do sonho de Luther King atingir a maior parte dos negros. We can, but isn’t gonna be that easy. E aqui, na terra da tolerância e do racismo velado que não mostra a cara para que possamos reagir a ele, será mais difícil ainda.
Bem, volto a dizer que no geral sou contra as cotas e todos os negros que conheço também são, mas enquanto elas forem necessárias como reparo de injustiças históricas e não me apresentarem outro mecanismo real e factível de inserção dos negros na sociedade, sou a favor. Para finalizar, quero dizer que todos os negros do Brasil apontam apenas uma emissora de televisão como protagonista de uma postura anti-cotas, e isso não é verdade, neste caso, a Band representou e muito bem a classe que é sua base, colocando inclusive estrategicamente imagens de negros dando depoimentos a favor das cotas e depois contra as cotas, com uma edição impecável, reproduzindo a lógica antiga de expor publicamente nossas “contradições”, até ai foram perfeitos, só não nos convenceram, assim como o choro dos grileiros não nos convencem ao jurar amor pela reforma agrária e pelos bóias-fria. O fato é que todos os conglomerados de mídia, de todas as tendências pensam da mesma forma, quando se tratam das cotas para negros. Só falei da Band porque foi lá que eu vi o Frei pagar seus pecados e em alguns momentos ser desrespeitado, mas não é só lá, se uma coisa está unindo a parte alta da pirâmide desse país é esse susto que vai virar realidade.
Amigos não tem jeito, a fraternidade e o amor haverá de prevalecer, e acreditamos que ou vocês vão nos convencer que as cotas são um mal para a sociedade, ou então vamos convencê-los de que é a nossa saída, pois uma única coisa é certa, ou dividimos todas as oportunidades e riqueza que esse país gera ou seremos obrigados a continuar dividindo as consequências da miséria que geramos. Ou nos dêem as cotas, ou paguemos a conta.
Celso Athayde é um produtor brasileiro, idealizador do Prêmio Hutúz e co-autor dos livros Falcão - Mulheres e o tráfico (2007), Falcão - Meninos do Tráfico e Cabeça de Porco e Secretário Geral da CUFA - Central Única das Favelas
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