terça-feira, 1 de setembro de 2009

A ditadura do padrão branco ético-estético no apartheid a brasileira

Carlos Henrique Machado Freitas


“Uma sociedade é sustentável quando consegue articular a cidadania ativa com boas leis e instituições sólidas. São os cidadãos mobilizados que fundam e refundam continuamente a sociedade e a fazem funcionar dentro de padrões éticos”. (Leonardo Boff) .
Celebrar ou repudiar as relações incestuosas entre a Lei Rouanet e as grandes corporações foi uma pauta que a nossa doutrina oficial cristalizou em nossos apaixonados debates sobre cultura brasileira nesses últimos maus tempos.

As necessárias reflexões sobre a discriminação e o preconceito hipocritamente se reservaram a uma pauta branca, caótica, escravizada pela freqüente inquietação de ganhos financeiros, dos financiamentos e etc.

“No caso do Brasil a marca predominante é a ambivalência com que a sociedade branca dominante reage, quando o tema é a existência, no país de um problema negro. Essa equivocação é, também, duplicidade e pode ser resumida no pensamento de autores como Florestan Fernandes e Otávio Lanni, para quem, entre nós feio não é ter preconceito de cor, mas manifestá-lo”. (Milton Santos).

É certo que a inversão dessa ética foi uma luta sem trégua do Ministro Gil. Essa é uma das suas grandes virtudes dele à frente da pasta, que contagiou também a administração de Juca Ferreira. O enfrentamento da questão negra e indígena nas manifestações fundamentais da vida nacional.

Porém, as classes dominantes e sua conhecida intolerância e inconformidade com a necessidade de celebrar um novo conceito de humanismo, de nação, impediu que essa gestação viesse à luz para uma busca igualitária contra a muralha chamada “ética conservadora”.

Os ostensivos ressentimentos expostos durante o governo Lula, contra a mudança de paradigmas nas políticas sociais, receberam os mais venais ataques. Sem dizer, é claro, que as cotas nas universidades públicas e o programa Bolsa Família mereceram dessa visão conservadora os maiores insultos.

No Brasil são comuns esses ataques planejados das classes dominantes que não querem a inversão da pirâmide, o comando, o destino do país tem que lhes servir sempre num primeiro, num segundo e num terceiro planos.

Impressiona a produção de falsos argumentos que ganham destaque em uma das mídias mais facciosas do mudo, que é a mídia brasileira. Ela, com predominante voz nos lares brasileiros e com sua maneira reacionária, afasta o aprofundamento desse debate em suas programações. Os partidos, as grandes instituições culturais vivem insistentemente de refrões retóricos. O centro da questão é frequentemente deslocado para um olhar ambíguo, onde a ordem racial vigente no Brasil, há 500 anos, fica intocável.

É impressionante como as convicções escravocratas sustentam o estereótipo sem querer atravessar o limite do simbólico e mergulhar numa convivência cotidiana, equilibrada das vozes todas do Brasil.

No Brasil, as instituições oficiais de cultura são retratos do fracassado projeto que só se mantém de pé como instituição pelo lobbie financeiro/político da escravidão estética, imposta pelo conceito branco, europeizado no Brasil. Às mesas de comando dessas instituições retratam tudo, menos o Brasil.

Essa ditadura de autorizados pelo Estado concentra uma idéia de pensamento superior que, cada vez mais, hipertrofia a corporeidade preconceituosa.

A individualidade, a cidadania e a sociabilidade são temas que deveriam ser emblemáticos, mas a nossa frieza intelectual neste patrimônio público/privado identifica só a linha demarcatória traçada por essa visão tirana.

Poderíamos perfeitamente trazer como imagem de toda essa política segregacionista uma frase de Almir Guineto, cantada no rico ambiente do samba, “Palmatória racha a unha, chicote deixa vergão”.

Os pontos de cultura são pontos que tentam suturar a cotidiana prática segregação que insiste em viver divorciada da nossa entidade racial.

O internacionalizado, o respeitoso civilismo normativo em que somos jogados pela força do comando estratégico da cultura institucional no Brasil ainda, por seu complexo de inferioridade, aceita a subserviência e quer transformá-la em pauta oficial.

Esse discurso colonialista jamais teve eco na sociedade do ponto de vista de suas livres manifestações. No entanto, no Brasil, a condição humana, sobretudo nas classes deserdadas, é lutar para desembaraçar-se dessa tara branca que brota da miséria, do flagelo institucional que é o nosso pensamento de excelência e entusiasmo mórbido.

A oposição ao negro, ao índio é, nesse ambiente, uma concepção didática. Não há nisso uma inocência funesta, uma displicência infantil. A mercantilização da cultura sustenta a sua cúpula com este ideário.

Enquanto isso se mantiver, enquanto todos nós covardemente não colocarmos a nossa voz rouca de tanto gritar contra o exercício cotidiano de segregação, ficaremos aqui nesta interminável selva branca sonhada e vivida a ferro e fogo pelos idealizadores de um Brasil branco, europeu e absolutista.

“Peço desculpas pela deriva autobiográfica. Muitas vezes tive, sobretudo neste ano de comemorações, de vigorosamente recusar a participação em atos públicos e programas de mídia ao sentir que o objetivo do produtor de eventos era a utilização do meu corpo como negro – imagem fácil – E não as minhas aquisições intelectuais, após uma vida longa e produtiva. Sem dúvida, o homem é seu corpo, a sua consciência, a sua sociedade, o que inclui a sua cidadania. Mas a conquista, por cada um, da consciência não suprime a realidade social e seu corpo nem lhe amplia a efetividade da cidadania. Talvez seja essa uma das razões pelas quais, no Brasil, o debate sobre os negros é prisioneiro de uma ética enviesada. E esta seria mais uma manifestação de ambigüidade a que já nos referimos cuja primeira conseqüência é esvaziar o debate de sua gravidade e de seu conteúdo nacional”. (Milton Santos)

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