Flávio Paiva
O Brasil vem se preparando para chegar ao futuro e não há futuro sem políticas públicas estáveis para a cultura. Como o modelo brasileiro atual conta apenas com 0,5% das receitas federais (cerca de insignificante R$ 1,3 bilhão) e com incentivos baseados em renúncia fiscal, portanto oscilantes conforme os nervos do mercado, a situação do País é crítica, num cenário mundial onde a cultura é priorizada pelas nações como componente estratégico do desenvolvimento.
A cultura é o lastro de sustentação de uma sociedade, a garantia da sua integridade no sistema de relações entre os povos. Sem ela, os avanços sociais e econômicos importantes que vêm sendo conquistados estarão sempre vulneráveis e não há como esperar que as promessas de educação se realizem. Mais do que indutor do crescimento, o Estado precisa ser comprometido com o desenvolvimento. E para que haja desenvolvimento é preciso que a nação seja culturalmente forte e respeitada por sua força cultural.
O presidente Lula costuma dizer que o nosso maior problema vem de um comportamento subordinado à ideia de país de segunda classe. Movido pela compreensão de que niguém respeita quem não se respeita, ele partiu bravamente com seu governo para a abertura multipolar da política e do comércio exterior, com fortalecimento de laços multilaterais e a diversificação da balança comercial. Respaldado pelo potencial de uma cultura futurista, com uma mesma língua e um território continental, tratou de garantir a existência de um mercado interno e de realizar a neutralização da dívida externa.
O Brasil que anos atrás sofreu de grave apagão elétrico e racionamento de energia está seguro por décadas, simultaneamente em energia fóssil e renovável, e caminhando para uma matriz energética predominantemente limpa. O potencial petrolífero da camada do pré-sal, nas águas profundas da costa brasileira, está sendo trabalhado para mudar o paradigma do modelo mental de colonizado que ainda insiste em manter a população à margem das suas próprias riquezas. Não tem sido fácil porque não nos preparamos culturalmente para tamanha alteração no nosso destino.
O governo brasileiro recebia ordens de como agir e de como aplicar pacotes econômicos preparados pelo G7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) e agora vem liderando um processo de pressão para a aceitação por parte desses e de outros países, cultural, político e economicamente dominantes, no que diz respeito à participação de outros povos na modelagem da governança planetária. Para assumir esse papel de destaque na ampliação da representatividade global, a diplomacia na gestão Lula quebrou o protocolo da submissão, em um grandioso gesto de superação cultural.
Dos passos que estão sendo dados nesse sentido, o que pretende implantar o que seria uma reforma cultural parece-me extremamente necessário e de grande urgência. Favorável a essa reforma do olhar, do sentir que sente, viajei a Brasília no dia 23 de setembro passado, a convite do Ministério da Cultura, para acompanhar a discussão e a votação da Comissão Especial constituida para dar parecer, dentre outras, à Proposta de Emenda Constitucional nº 150, a PEC da Cultura, que propõe o percentual de vinculação de 2% do orçamento Federal para a cultura, o que corresponde a algo em torno de R$ 5,3 bilhões.
Como havia sido feito um pedido de vista do processo (recurso democrático que tira a proposta da pauta para análise) ficara no ar a expectativa de que algum lance político pudesse tentar prorrogar a votação, com a inclusão de substitutivos que inviabilizassem a aprovação. O debate e a votação foram acompanhados por artistas, produtores, gestores culturais e interessados no desenvolvimento sustentado, que defendem que as políticas públicas deixem de ser paliativos, constituindo-se como um direito humano, condição que torna a universalização das oportunidades culturais uma prática indispensável ao exercício pleno da cidadania.
O debate teve um bom nível. Após ouvir as ponderações dos colegas, o deputado Raimundo Gomes de Matos (PSDB-CE) retirou sua proposta de substitutivo que, segundo o parlamentar, tinha como motivo evitar que os critérios de rateio fossem definidos por lei complementar e isso retardasse a inclusão da dotação pretendida no orçamento de 2010. A preocupação apresentada pelo deputado cearense já estava contemplada em uma disposição transitória que remete os critérios de rateio aos percentuais aplicáveis aos Fundos de Participação dos Estados (FPE) e Municípios (FPM), até que a lei complementar entre em vigor.
Apenas uma pequena alteração na redação, proposta pelo deputado Zezéu Ribeiro (PT-BA), foi feita em rápido consenso. No trecho da PEC 150, que determina a aplicação anual de “nunca menos de 2% por parte da União, 1,5% pelos Estados e Distrito Federal e 1% pelos Municípios, da receita resultante de impostos, “na preservação do patrimôniou cultural brasileiro e na produção e difusão da cultura nacional”, ficou acatado pelo relator, deputado José Fernando Aparecido (PV-MG), que a palavra “nacional” seria substituída por outra que não apresente risco de interpretação que venha a se valer de parâmetros xenófobos. Paz no plenário.
A aprovação das PECs 324 (2001), 427 (2001), 150 (2003) e 310 (2004), respectivamente dos deputados Inaldo Leitão (PSDB-PB), Régis Cavalcante (PPS-AL), Paulo Rocha (PT-PA) e Fábio Feldmann (PSDB-SP), feita por unanimidade pelos membros da Comissão Especial, caracteriza um momento histórico para o desenvolvimento brasileiro: o inicio do tratamento da cultura efetivamente como um Direito Social, como está determinado na Constituição Federal de 1988 (arts. 215 e 216).
A República começa a assumir que precisa prover os meios necessários à preservação, proteção e divulgação do patrimônio cultural material e imaterial brasileiro, considerando nesse escopo os bens tomados individualmente ou em conjunto, que sejam portadores de referências à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade. A Comissão Especial vinha analisando as PECs desde 8 de abril deste ano, sob a presidência do deputado Marcelo Almeida (PMDB). Vale dizer que o relator é filho do primeiro Ministro da Cultura, José Aparecido, que assumiu o cargo em 1985, por indicação de Tancredo Neves.
A estabilidade de aporte de recursos públicos nos três níveis federativos permitirá maior integração institucional, regional e setorial, dinamizando a cidadania cultural e contribuindo com o desenvolvimento econômico e social. Para assegurar a co-responsabilidade pela gestão da cultura, a proposta determina que a União destine 20% aos Estados e Distrito Federal e 30% aos Municípios do total dos recursos destinados à promoção da economia da cultura e da cidadania cultural.
Aprovada na Comissão destinada a examinar e a dar parecer às PECs da Cultura, o tema seguirá para votação em dois turnos na Câmara dos Deputados e mais dois turnos no Senado Federal. O discernimento apresentado pelos parlamentares integrantes da Comissão Especial sinaliza para a clareza e a importância do propósito e revela que a cultura está assimilada como uma prática social indispensável ao desenvolvimento. Este será um momento de observação do compromisso de deputados e senadores com o projeto brasileiro de ser verdadeiramente um país influente na nova ordem mundial. (a parte final deste artigo será publicada na próxima quinta-feira, dia 8/10/2009).
* Texto originalmente publicado no jornal Diário do Nordeste do dia 01 de outubro de 2009.
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