sexta-feira, 30 de julho de 2010

Cidadania Contra a corrente, buscando garantir o futuro dos jovens



Litza Mattos e Valéria Flores - 29/07/2010
A última pesquisa do IBGE (1995) sobre a população jovem revela que existem mais de nove milhões de jovens, de 15 a 24 anos, residentes nas regiões metropolitanas brasileiras, cifra esta que corresponde a 20,0% da população total dessas regiões.
Diante desses dados e, no mês em que o “caso Bruno”, mobilizou a mídia brasileira e povoa o imaginário da sociedade, de forma lamentável, o EU ACREDITO traz um exemplo de vida que exibe semelhanças. Na entrevista a seguir, Alex Pereira Barbosa, o cantor e fundador da Central Única das Favelas (Cufa), MV Bill fala de sua trajetória de menino pobre numa comunidade carente, à profissional da música e ator sociocultural reconhecido nacional e mundialmente e mostra que as semelhanças com outros famosos, de origem humilde, cada vez mais, presentes na mídia por atos ilícitos, acaba por aí. Assim como tantos outros, sua história é a prova viva de que carregar o “peso” de um passado convivendo com dificuldades, pobreza financeira, violência e outros fatores sociais, não significa ter apenas uma escolha: o crime. Pelo contrário, por mais difícil que seja, como ele mesmo diz, “é muito fácil falar que as pessoas têm opções”, elas continuam existindo e são o que podem fazer a diferença numa vida inteira. Um outro caminho, o do exemplo ético e solidário e de luta por justiça social. “Eu acredito que o conhecimento vem a partir daquilo que a gente vivencia e, daí em diante, criamos condições de modificar o que achamos necessário. Eu conheci e agora posso tentar ajudar a mudar para melhor a realidade dessas pessoas, assim como eu modifiquei a minha”, afirma Bill.

E as mudanças em sua vida foram drásticas e definiram o presente. Alex Pereira Barbosa, ou MV Bill, 36 anos, nasceu em uma família humilde na comunidade Cidade de Deus, zona Ooeste carioca, onde mora até hoje. O pai, o bombeiro hidráulico, Mano Juca, e a mãe, a dona de casa Cristina. Bill é um apelido de infância, referência a “Rato Bill”, desenho de um rato que vinha em figurinhas de uma goma de mascar, durante a Copa do Mundo de 1982. O apelido MV aparece por volta de 1991, quando escuta Public Enemy – grupo de Nova York muito politizado – e lê as biografias de Malcom X (1925-1965), foi um dos maiores defensores dos direitos dos negros nos Estados Unidos e de Zumbi dos Palmares (1655-1695), o último dos líderes do Quilombo dos Palmares, no Estado de Alagoas, uma comunidade auto-sustentá vel, formado por escravos negros fugidos das fazendas, prisões e senzalas brasileiras.

A partir daí, Bill passa a promover encontros e conscientizar os moradores de sua comunidade, através de conversas e do rap. Algumas senhoras religiosas da Cidade de Deus, ao verem como a música transmitia a mensagem popular das favelas e suas críticas aos problemas sociais, batizaram-no de Mensageiro da Verdade. Ele é o autor, junto com Celso Athaíde, do famoso livro e documentário Falcão - Meninos do Tráfico, o mais famoso de sua carreira. Na obra, MV Bill conta a história de vida de dezessete meninos envolvidos com o tráfico de drogas em diversas favelas; dos dezessete, apenas um sobreviveu. Na época, Bill, recebe uma série de represálias e acusações de apologia ao crime, mas também o apoio de personalidades da música e adeptos do movimento, conhecedores do seu trabalho social. Referência comunitária e personagem midiático, o raper já foi também premiado pela Unesco como uma das 10 pessoas mais militantes do mundo, nos últimos 10 anos.

Por meio da crônica musical da situação das favelas brasileiras, MV Bill transmite seu discurso político sobre violência, discriminação e cidadania. Junto com o produtor, Celso Athaíde, criou a Central Única das Favelas (Cufa), uma Organização Não-Governamental (ONG), com bases de trabalho em várias partes do Brasil e no mundo, cuja forma de expressão predominante é o hip hop, como forma de fomentar a produção cultural das favelas brasileiras, através de atividades nos campos da educação, esporte e cultura. Além da sua vida, na entrevista abaixo, MV Bill aborda temas nacionais, como a educação, responsabilidade social, sistema de cotas para negros, nas universidades, políticas públicas e outros, atuais e urgentes na sociedade brasileira.

Em toda a sua trajetória, o que aponta como propulsor de um resultado diferenciado nas comunidades, como a que você nasceu e vive até hoje?
Antes: Sorte. Hoje: comprometimento social de quem teve mais sorte e possibilidades com aqueles que não tiveram. Compartilhar conhecimento já é um grande caminho para resultados diferenciados.

Com a sua experiência de vida e os conhecimentos adquiridos, qual o seu diagnóstico sobre as condições sociais e o perfil, da população jovem no Brasil?
Acho preocupante. Vejo pelos meus vizinhos. Todas as filhas de uma vizinha já tiveram filhos, às vezes mais de um e algumas com apenas 15 anos. E eu estou falando de Rio de Janeiro. Estive em Natal no ano passado e ouvi as pessoas falando e relatando que a principal praia da cidade era cenário de prostituição de crianças e adolescentes. Diante dessa realidade, precisamos pensar em uma revolução do ensino. Pensando na educação, vemos que os jovens estão conectadas em uma velocidade que as escolas não acompanham: o formato tradicional, do professor na sala de aula, de pé dizendo o que é certo ou errado e fazendo nossa juventude aprender a decorar o que está nos livros. Isso está longe do que eu acredito que seja estimulante e efetivo para o saber. E não acontece só nas escolas públicas. Recentemente ouvi o relato de uma mãe de uma menina que estuda em uma das escolas mais “caras” do Rio de Janeiro. Ela foi ver o boletim da filha e as notas eram ótimas, mas quando decidiu conversar com a filha sobre história, a filha não sabia responder. A menina disse que a professora manda ler o capítulo do livro e frisar o que é importante e depois a prova é aplicada. A mãe da menina ficou indignada e decidiu ir até a escola, para reivindicar e deixar claro que ela não estava pagando uma mensalidade alta, para constatar que a filha só aprendia a decorar. Acho que a nossa juventude precisa vivenciar as experiências e assim adquirir conhecimento. Eu sei que é complicado e que isso vai levar muito tempo pra mudar, mas acho que a hora é essa. Os espaços de educação no futuro não parecem que vão ser a sala de aula, mas sim os computadores, através dos blogs, sites de relacionamento. Está mais do que na hora de ficarmos atentos a isso.

Como avalia as atuais políticas públicas voltadas para proteger a infância e adolescência no país?
As políticas públicas não podem ser para a juventude, precisam ser contra a juventude. Pequenas mudanças, mas com grande diferença.

Quais os sentimentos e os pensamentos, diante de questões ainda polêmicas e de difícil consenso no país, como o sistema de cotas para negros nas universidades?
O tema das cotas em universidades no Brasil sempre gera um debate intenso. É claro que eu não acredito que as cotas sejam a solução para o problema do abismo educacional que assola a maioria esmagadora da população negra desse país. É claro que eu acredito que uma reforma educacional, com escolas de qualidade para todos seja essa solução. O ideal é que as escolas públicas atendam com a qualidade necessária a todos os brasileiros, desde muito novos. O problema é que essa reforma, mesmo que iniciada nesse momento e com muito empenho de todos, vai demorar anos para se concretizar. Então, o que fazemos com os jovens negros que estão concluindo agora o ensino médio? Esperam essa reforma acontecer e chegar a hora deles? Estou convencido de que as cotas em universidades, assim como em outros setores, é uma medida eficaz e a única possível para o momento em que vivemos.

Algum fato ou sentimento que tenha marcado o início da sua trajetória como militante social?
A minha trajetória social já vinha sendo construída, na mesma medida em que eu vinha me construindo e me descobrindo como pessoa, da realidade em que vivia e via ao meu redor o tempo todo. Mas se tiver que definir um momento onde isso realmente se tornou decisivo, foi no momento em que eu assisti ao filme “Colors - As cores da violência”, sobre duas gangues que disputavam o controle da venda de crack em Los Angeles (Estados Unidos). Assistindo àquele filme eu percebi as semelhanças com a comunidade onde vivia, a Cidade de Deus, e que deveríamos fazer alguma coisa para mudar.

Nesses anos de atuação, na área sociocultural, alguma experiência a ser trocada? Várias, mas destacaria o documentário “Falcão - Meninos do Tráfico”, como uma experiência negativa e positiva. Não me senti feliz em constatar a realidade que os jovens brasileiros viviam e ainda vivem. Mas, foi positiva porque conheci de perto os dois “brasis” que eu menciono no depoimento (da van) que fiz na época, no documentário. Eu acredito que o conhecimento vem a partir daquilo que a gente vivencia e, daí em diante, criamos condições de modificar o que achamos necessário. Eu conheci e agora posso tentar ajudar a mudar para melhor a realidade dessas pessoas, assim como eu modifiquei a minha.

Qual era a ideia, quando começou a sua pesquisa com o produtor brasileiro, Celso Athayde, sobre a realidade das favelas cariocas?
Muitas vezes durante as entrevistas com os jovens eu pensava: esses meninos nem sabem o que eles estão fazendo. Era quase uma experiência surreal, mas infelizmente não era. Eu me senti na obrigação de retratar o que eu conheci. Pensei muito sobre o que iríamos fazer. “Exterminar” todas aquelas crianças de jovens, nós não podíamos, mesmo que, de certa forma, elas já estavam “exterminadas” socialmente. É muito fácil falar que as pessoas têm opção, mas quanta gente que tem tudo e está por aí cometendo crimes. Quantas pessoas estão deprimidas mesmo com família, casa e trabalho. E esses jovens? Será que eles não passam por isso? Não né? Para esse outro Brasil do qual eu não faço parte, esses jovens e seus pais e irmãos nem existem. Até que a condição de vida desses jovens bata na porta desse outro Brasil. O que eu quero é não ser cego, nem burro.

Como surgiu a Cufa? Tem a ver com o clipe “Soldado do Morro”?
Acho que a ideia da Cufa já existia, já estava ali na minha cabeça, na do Celso, na cabeça das pessoas que estavam junto com a gente na época (1999-2000). O clipe “Soldado do Morro” criou polêmica e deu a visibilidade necessária. Fui tratado como bandido, mas às vezes eu penso que as pessoas que comandam, as que têm poder, não fazem o que fazem de propósito, elas apenas ignoram. Essas pessoas passam tanto tempo voltadas para seus próprios interesses que ficam “emburrecidas” no que diz respeito ao seu próprio povo e, consequentemente, a eles mesmos. Eu, Celso e as pessoas que estavam conosco felizmente não pensávamos da mesma maneira. E ainda não pensamos. Então acho que a Cufa já existia antes do clipe, a Cufa já era um sentimento, que pretendia levar um pouco de informação sobre o Brasil que nós conhecemos para essa gente que ignora.


Fale sobre a metodologia utilizada na Cufa para mobilizar os jovens?
Nos Estados Unidos eu vi muitos projetos ligados a música,com bons resultados. A Cufa se diferencia muito nesse sentido, apesar de termos nossa iniciação com muita base nos conceitos do hip hop, nosso leque é aberto, a ponto de oferecer oficinas e cursos de suma importância, mas sem necessariamente ser ligado à música.


Comente uma afirmação sua: “A igualdade nas diferenças é possível”
O trabalho que mais realizamos na instituição é o de propiciar o protagonismo, principalmente de jovens, que antes estavam literalmente à margem da sociedade, como se não fizessem parte dela. O objetivo é que essas pessoas tomem as rédeas de suas vidas. Isso é mais que reconhecer que a igualdade nas diferenças é possível. É reconhecer que a superação das diferenças não só é possível, como é uma realidade.

E as premiações que ganhou? Reconhecimento?
Se tornar um líder é uma consequência das ações que desenvolvemos. Acredito que o grande exemplo é a construção de uma instituição criada por negros das periferias, que tomou a proporção e a importância que a Cufa alcançou, atuando em todos os segmentos da sociedade.

Alguma crítica quanto aos programas socioculturais implementados por grandes organizações em nome da responsabilidade social e ambiental?
Em um país onde a ganância e a corrupção tomam proporções absurdas, o trabalho das empresas nesse sentido é fundamental para uma movimentação do pensamento do consumidor. Outro dia estava perto de um amigo quando ele recebeu uma carta do banco para comunicar uma fusão. A carta era uma coisa fantástica, tinha um cartão moderno, tipo 3D. Nos perguntamos: pra que tudo isso? Meu amigo se sentiu aliviado por ter trocado de banco porque o dinheiro gasto naquilo poderia ser usado para um projeto social real, como forma de comemoração da tal fusão. Eu acho que podemos ter críticas a esses programas e eles podem até vir a ser oportunistas. Mas os consumidores, minha mãe, meu vizinho, meu sobrinho, hoje todos já temos uma certa consciência e quando pensamos em uma empresa, pensamos se ela tá fazendo algo pela nossa comunidade ou por outras. Eu acredito que isso movimenta o nosso pensamento para algo melhor.

Após tantas conquistas, algum sonho ou meta a alcançar?
Muitas, quando a gente para de sonhar é porque a gente morreu.

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