terça-feira, 13 de outubro de 2009

Entrevista com o Secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, José Luiz Herencia

Conheci pessoalmente o José Luiz Herencia, secretário de Políticas Culturais do MinC, há algumas semanas, num seminário promovido pela Fundaj, em Recife (PE). Fiquei muito bem impressionado com a sua forma forma franca e aberta de assumir responsabilidades, fortalezas e fragilidades do Ministério. E, ao mesmo tempo, a abertura para o diálogo, já que as portas do MinC andam fechadas para os que o criticam.
Herencia concedeu a seguinte entrevista por e-mail, que tem o Plano Nacional de Cultura como pano de fundo, mas aborda mecenato, orçamento e reestruturação do MinC:

Leonardo Brant - O que significa o PNC para as políticas culturais brasileiras?

José Luiz Herencia - Para começar, significa que existe – de fato – uma política cultural contemporânea no Brasil. Isto é, que o Estado brasileiro assume, também em relação à cultura, seu papel essencial, que reside na capacidade de coordenar, articular e estimular políticas, programas e ações em cooperação com a sociedade, o que exige planejamento. Ora, mas de que Estado estamos falando? Não se trata, vale destacar, de sua versão autoritária, que atuava no conteúdo das políticas culturais, estabelecendo, entre outras coisas, o conceito de identidade cultural que deveria ser promovido ou preservado. Não é nada casual que, em 1975, o governo Geisel tenha lançado sua Política Nacional de Cultura, o “PNC da ditadura”, produzido em reuniões fechadas no Conselho Federal de Cultura do MEC com o objetivo de estabelecer os códigos de controle sobre o processo cultural. Sobre este período, aliás, recomendo um estudo de Gabriel Cohn intitulado “A concepção oficial de cultura nos anos 70” (in: MICELI, Sérgio. Estado e Cultura no Brasil, São Paulo: 1984). No PNC que aprovamos no último dia 23 de setembro, o Estado não surge nem como fonte do conceito de cultura nem como medida da produção cultural, definindo arbitrariamente o que deve ou o que não deve ser reconhecido e apoiado. Fruto de uma parceria bem sucedida entre a Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, as secretarias estaduais de Cultura e o MinC, foi construído a milhares de mãos, em audiências públicas realizadas em todo o Brasil com artistas, produtores, intelectuais, patrocinadores, gestores públicos e privados. Reflete, portanto, a complexidade da atividade cultural no país, que demanda uma política cultural livre de conteúdos normativos, fruto de uma sociedade que se constituiu desde cedo sob o signo da diversidade. E é dela, afinal, a prerrogativa exclusiva de produzir cultura. O Brasil é um país complexo, que está se posicionando no mundo de uma forma inédita. Como afirmou Gilberto Gil em uma entrevista recente, este país nasceu para ser uma universalidade, não uma nacionalidade, nunca uma identidade. É nesse sentido, disse Gil, que “o Brasil é uma virtualidade”. Concluiu ele: “Como hoje a virtualidade está no plano da própria atualidade, o Brasil virou uma atualidade. Não como país, mas como mundo”. O episódio de Copenhague foi emblemático: a diversidade cultural brasileira, essa vocação original para a universalidade apontada por Gil, conquistou o COI, trouxe a Olimpíada para o Rio de Janeiro. O mesmo COI que criticou a monocultura do futebol no Brasil… Mas isso não seria possível sem planejamento, sem um projeto ambicioso como o que foi apresentado.

LB - Quais os próximos passos até a aprovação definitiva do PNC?

JLH - O substitutivo aprovado na Comissão de Educação e Cultura seguiu nesta semana para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, que analisa os projetos do ponto de vista formal e legal. Ali, como em todas as outras comissões, será designado um relator. Depois de votado, o projeto de lei vai para o Senado, mais precisamente para a Comissão de Educação, Cultura e Esporte. Depois dela, a CCJ do Senado. Se tiver alterações, volta à Câmara. Cumprida toda a tramitação nas duas casas do Congresso Nacional, o texto é encaminhado à sanção presidencial, para virar lei. Num prazo de 180 dias após a sanção, serão regulamentadas metas para o cumprimento dos objetivos do PNC.

LB - Sem orçamento o PNC é impraticável. A estratégia do MinC inclui a aprovação conjunta do PEC 150? Os Congressistas têm noção da interdependência dos dois? Não há o risco de perdermos os dois, ou seja, não seria melhor aprovar o PNC depois o PEC? Fale-nos sobre a estratégia de articulação com o Congresso Nacional.

JLH - O Congresso Nacional tem demonstrado sensibilidade e é parceiro do setor cultural e do Ministério da Cultura em muitos momentos. Jamais adotaríamos a estratégia de driblá-lo, o que, aliás, me parece impossível. A melhor estratégia tem sido a de conversar, sensibilizar, aprofundar o debate com cada parlamentar. Nesse ponto, a discussão sobre orçamento é das mais complexas. Evidente que a capacidade de planejamento de longo prazo, conquistada com a aprovação do PNC – um documento amplamente debatido com a sociedade e com o próprio Congresso Nacional –, precisa se traduzir, sem meias palavras, em capacidade de investimento. E o setor cultural brasileiro só agora começa a possuir um e outro, que são complementares. Dinheiro sem planejamento vira despesa, nunca investimento. Quando o presidente Lula assumiu o governo o orçamento do Ministério da Cultura era de apenas 0,2% do orçamento da União, cinco vezes menor do que recomenda a Unesco como patamar mínimo, como “piso de dignidade”. Hoje é de quase 0,7%, o que ainda é muito pouco, e o ministro Juca Ferreira luta diuturnamente para mudar essa realidade. A PEC 150, aprovada na respectiva comissão especial no mesmo dia do PNC, garante para a cultura 2% do orçamento da União, 1,5% dos Estados e 1% dos municípios. Além disso, a proposta da nova Lei de Incentivo prevê que o novo Fundo Nacional de Cultura, fortalecido, seja capaz de repassar recursos de fundo a fundo para estados e municípios, o que aumentará significativamente as verbas à disposição da produção cultural no Brasil, exclusivamente para as atividades chamadas “finalísticas”, como editais, seleções públicas (e não para o custeio da máquina administrativa). Mas é preciso enxergar melhor o cenário internacional, em que mesmo um país como os EUA, em que a tradição de investimento privado em cultura é antiga, está fortalecendo o National Endowment for the Arts (bem como o National Endowment for the Humanities), aliás, por determinação do próprio presidente Barack Obama. A crise econômica parece ter suprimido a ideia, corrente ao longo da década de 1990, de que o Estado é melhor na mesma razão em que for menor seu conjunto de competências e maior sua capacidade de apenas distribuir recursos, de forma despojada e sem critérios, terceirizando suas atribuições essenciais e abandonando a necessidade de planejar, coordenar e avaliar, com a sociedade, a chamadas políticas públicas. Nem o Estado máximo dos regimes autoritários, nem o Estado mínimo da “década perdida”, mas um novo modelo, com capacidade de planejamento e de investimento para, em cooperação com a sociedade (em que incluo o setor privado), cumprir suas novas tarefas. Em relação ao que nos interessa aqui, a política cultural, é preciso lembrar o alerta de Yúdice, de que a cultura está sendo convocada para resolver problemas que antes estavam sob domínio da economia ou da política. Se, no caso brasileiro, isso constitui uma oportunidade ou um risco, só a nossa coragem para enfrentar os desafios que estão na mesa será capaz de responder. E essa missão precisa ser compartilhada entre governo, parlamento, artistas, produtores e patrocinadores, quase como um mantra: “todos pela cultura para todos”.

LB - Como artistas e profissionais da cultura podem apoiar a ação junto ao Congresso?

JLH - O setor tem se organizado e marcado presença diretamente no Congresso Nacional ou em contato com as bancadas estaduais. No dia em que a Câmara votou o PNC e a PEC 150, vale lembrar, a presença de artistas e produtores foi muito importante. Há também a Frente Parlamentar de Cultura (que é presidida, agora, pelo deputado Geraldo Magela, também relator do orçamento de 2010), as Comissões de Educação e Cultura da Câmara e do Senado, diversos grupos de ação parlamentar etc. E, ainda, as entidades, conselhos, fóruns, blogs e sites como este, entre muitas outras instâncias de organização e representação. Todos podem, ainda, procurar seu deputado ou senador, qualquer parlamentar, de qualquer partido – pois todos eles são importantes neste momento de debate democrático.

LB - O PNC exige uma reestruturação de todo o MinC. Vocês já estão se mobilizando para isso, ou vai ficar para o próximo mandato?

JLH - Em muitos aspectos a reestruturação do MinC já foi iniciada. Exemplos: tanto a criação do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram, antiga reivindicação do setor museológico) quanto da Diretoria de Direitos Autorais (que no Estado brasileiro chegou a ser composta por apenas um servidor… e que hoje é uma área técnica de excelência no poder público federal), da Coordenação-Geral de Economia da Cultura e de Estudos e Culturais; a implementação, em curso, da Ouvidoria, o aprimoramento do serviço de atendimento ao proponente e do processo de execução de emendas parlamentares e assim vai. O Ministério da Cultura, que não é mais “uma caixa de repasses de recursos para uma clientela preferencial” (na expressão de Antonio Risério), assumiu suas responsabilidades e passou a atender demandas sociais extremamente complexas, como populações indígenas e os pontos de cultura (articulando e impulsionando ações originadas da comunidade), investiu em infra-estrutura (Programa Mais Cultura, que faz parte da Agenda Social do Governo federal e, entre outras metas, vai zerar o número de municípios sem biblioteca no país até o final do ano) etc. Em 1992, apenas 10 projetos foram aprovados na Lei Rouanet, de 19 inscritos. Em 2008, mais de 10 mil proponentes inscreveram projetos, e mais de 7 mil foram aprovados… A demanda cresceu vertiginosamente, sobretudo nos últimos anos, e a estrutura do Ministério não acompanhou esse crescimento. Mas o aprimoramento da gestão está tanto em nosso horizonte imediato quanto no planejamento de médio e longo prazo do MinC.

LB - Minha leitura do PNC aponta uma incoerência entre as diretrizes para o mecenato e o projeto de revogação da Lei Rouanet, que deve gerar uma diminuição substancial dos investimentos via renúncia. Gostaria que vc comentasse esta provocação.

JLH - A ideia de que a nova lei de incentivo vai “gerar uma diminuição substancial dos investimentos via renúncia” é equivocada e corre o risco de promover uma verdadeira mistificação. Nossa proposta fortalece o Fundo Nacional de Cultura, que não poderá ter menos recursos do que a renúncia fiscal. Renúncia fiscal não é política cultural. Mesmo assim, que se frise, este ministério aumentou em mais de três vezes os recursos destinados ao setor cultural via renúncia. Mas isso não é suficiente, não atende o conjunto de demandas sociais pela cultura no Brasil. A presença do setor privado no financiamento à cultura é altamente desejável e deve, no entendimento do MinC, aumentar, sobretudo por meio de recursos próprios. Isso é importante para o fortalecimento do sistema cultural no Brasil. Renúncia fiscal de 100% ou mais, como no modelo atual, gera uma irracionalidade cujo preço todo o setor cultural está pagando, que é a falta de um verdadeiro mecenato privado no país. Os 100%, aliás, nem sequer figuram entre as obscenidades da Lei Rouanet em sua versão original. Aparecem em uma portaria posterior, como também as diretrizes que privilegiam um ou outro segmento ou mesmo gêneros de expressão artística em detrimento de outros, como se a própria teoria dos gêneros não estivesse em desuso no pensamento sobre a arte. Mas o Ministério não selecionou interlocutores neste debate. Há instituições ligadas ao setor privado que realizam um trabalho de grande valor, que são fundamentais no sistema cultural brasileiro. Por isso o MinC dialogou com todos, em todo o país, superou impasses e chegou a consensos em vários níveis, unindo inclusive os principais patrocinadores, tanto estatais como do setor privado – como Petrobras, bancos oficiais, Gerdau, Itaú, Santander e Bradesco –, que emitiram notas de compromisso com os avanços propostos. Então, quando em uma entrevista Ronaldo Bianchi (secretário adjunto de Cultura do estado de São Paulo) se esquiva do debate estadual sobre o esvaziamento do ProAC dizendo que “o MinC deveria buscar mais verba, e não diminuí-la”, fico preocupado com a qualidade de um debate que tem sido do mais alto nível em todo o país.

LB - O futuro das políticas culturais e do financiamento à cultura parece-me muito promissor. Mas e o presente? O MinC prometeu um pacote anticrise, mas até agora é o único setor negligenciado pelo governo. O que vem pela frente?

JLH - Desenvolver uma política cultural consistente é a grande medida anticíclica contra futuras crises. A crise econômica internacional continua nos oferecendo uma excelente oportunidade de revisão de prioridades e modelos. Inclusive do próprio modelo de desenvolvimento, cujo conceito precisa ir além do simples desenvolvimentismo, baseado exclusivamente em metas de produção industrial e de infraestrutura. Boa parte da inteligência brasileira, aliás, afirmou-se pela crítica deste modelo… A presença da cultura entre os setores beneficiados pelo Fundo Social do Pré-sal, uma conquista gigantesca que nasceu do empenho pessoal do ministro Juca Ferreira e da inteligência do presidente Lula, mostra a crescente sensibilidade do governo para a necessidade dessa mudança. Contudo, em relação à diminuição do volume de patrocínios realizados em 2008/2009 por meio da renúncia fiscal (via Lei Rouanet), é necessário esclarecer que isso tem origem em uma decisão de natureza operacional, e de planejamento orçamentário, das empresas. Elas cortaram investimentos para garantir liquidez no caixa. Fica claro, com isso, que um modelo de financiamento como o praticado no Brasil, que se sustenta numa espécie de monólogo da renúncia fiscal, é extremamente vulnerável, sobretudo nos momentos de crise, em que a cultura deixa de ser prioridade para as empresas.

O Brasil é, antes de tudo, um país que se distingue pela enorme diversidade cultural e natural, mas também por gravíssimas desigualdades sociais e regionais, que, embora sejam características de nossa formação histórica e econômica (e por isso mesmo), precisam ser superadas. Nossa capacidade de superá-las determinará se entraremos pela porta principal ou pelos fundos, de frente ou de viés, como player ou como display na geopolítica do conhecimento. Em relação às políticas culturais, o desprezo pelo planejamento – evidente, por exemplo, na falta de indicadores sobre a atividade cultural no Brasil anteriores a 2003, quando o MinC assinou os primeiros convênios com instituições como o IBGE e o Ipea – foi, até o início do governo Lula, um enorme entrave para o desenvolvimento cultural do país. Até então, a presença e os investimentos do Estado pareciam depender mais do juízo de gosto dos dirigentes (para não falar de outros componentes de natureza personalista, segundo a expressão de Sérgio Buarque de Holanda) que do imperativo de debater com a sociedade e mirar o futuro com algum grau de imaginação institucional. Aliás, a ausência de uma política cultural, de que o desprezo pelo planejamento é a um só tempo causa e efeito, permitiu que, enquanto o próprio conceito de Estado se derretia (década de 90), as leis de incentivo se fantasiassem, elas mesmas, de política cultural. Assim, como reação do sistema cultural ao longo período de incursões autoritárias do Estado, a maioria preferiu simplesmente “chutar o cachorro morto”. E o atual modelo de financiamento à cultura se estabeleceu como uma espécie de veneno-remédio, sem deixar de ser, ele mesmo, um fator inercial de reprodução – no interior da produção cultural – de algumas das principais distorções macroeconômicas do país. Afinal, quem apostaria, em 1991, no triste espetáculo do derretimento – agora dos mercados – programado para 2008?

Em síntese, o desafio é o seguinte: as políticas culturais precisam ser capazes de promover – em sua forma – a diversidade cultural brasileira Mas não se faz política pública sem planejamento, sem horizonte de médio e longo prazo e objetivos, metas e indicadores confiáveis, para que a própria sociedade tenha condição de avaliar seus resultados. Para isso estamos aprovando o Plano Nacional de Cultura, que cria o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais. Mas é preciso articular a política cultural em todo o país, missão do Sistema Nacional de Cultura. Há também que se atingir, como na expressão do secretário executivo Alfredo Manevy, um piso de dignidade para o orçamento (PEC 150). É necessário, ainda, aprimorar a legislação para estimular o desenvolvimento de uma verdadeira economia da cultura no país, diversificando os mecanismos de financiamento com critérios também diferenciados, de modo que seja possível estimular os variados perfis da produção cultural brasileira em toda sua diversidade (reforma da Lei De Incentivo à Cultura), além de garantir para a população o acesso aos bens, serviços e conteúdos culturais (Vale Cultura). Sem esquecer que, para que o país deixe definitivamente o passado patrimonialista para trás e chegue com esplendor ao futuro digital, é preciso modernizar a lei que rege o direito autoral. A era da cultura cibernética, da cultura digital, nos provoca com uma pergunta decisiva: somos capazes de criar um mundo melhor, com uma espécie de novo contrato social, que evite a tentação de reproduzir – em nossas também novas relações sociais (e modelos de negócio) – os velhos e desiguais princípios de organização e troca que parecem ter nascido com a própria sociedade?

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